avanços dos anos 1900 dão ao Brasil
do século 21 a chance de crescer e
tornar-se um país socialmente justo
A FORÇA DA IMIGRAÇÃO
Italianos em São Paulo: no início do século, a chegada dos estrangeiros incentivou a industrialização
Na convenção das medidas de tempo, um século é um intervalo de 100 anos. Na ordem do pensamento humano, é um período que encerra um ciclo, ajuda a entender, construir e contar a história do mundo. Para as pessoas tomadas individualmente, no entanto, um século é muito tempo. Elas tendem a fixar sua atenção nas fases mais recentes por que passaram. Esquecem-se do largo prazo e, portanto, perdem a dimensão das grandes mudanças. Em 1900, o Rio de Janeiro, capital federal da jovem República brasileira, tinha apenas 690.000 habitantes e praticamente nenhuma rua calçada. Os ricos viviam em palacetes com ares franceses, mas podiam morrer de febre amarela, malária ou peste bubônica quase tão facilmente quanto a massa que habitava os cortiços amontoados em ruelas espremidas. Em São Paulo, onde moravam 240.000 pessoas, a atividade industrial já ditava o ritmo da cidade, em boa parte impulsionada pela segunda leva de imigração, que acabava de compor o mosaico étnico do povo brasileiro. Mas, do Viaduto do Chá, ainda se avistavam as grandes plantações que lhe deram nome. Informações como essas, junto com outras 16 000 variáveis que compõem a saga brasileira no século passado, emergem do trabalho Estatísticas do Século XX, lançado pelo IBGE na semana passada.
Nesse período, a população brasileira multiplicou-se por dez. A riqueza do país cresceu 100 vezes a uma taxa média de 5% ao ano, próximo do padrão dos Tigres Asiáticos – graças, sobretudo, aos primeiros 73 anos do século XX, em que o Brasil cresceu mais que qualquer outro país do planeta. A mortalidade infantil reduziu-se drasticamente, assim como a taxa de analfabetismo. Em que pese o aumento da desigualdade de renda nos últimos trinta anos, o país deu um salto que lhe permite chegar ao século XXI em condições para enfrentar os desafios atuais e futuros.
Fundação do primeiro centro de defesa do petróleo, em 1948: berço da Petrobras
Esse desempenho é particularmente impressionante quando se leva em conta que o século XX brasileiro foi ainda mais curto que o século XX mundial. Segundo diversos historiadores, o século do ponto de vista ocidental começou em 1914, na I Guerra Mundial, e terminou com o fim da União Soviética, em 1991, ou dez anos depois disso, com o atentado terrorista de 11 de setembro em Nova York, como preferem outros analistas. Partindo desse mesmo conceito, nosso século teve início em 1930, com o golpe liderado por Getúlio Vargas, que lançou as bases da sociedade industrial urbana. E está se encerrando neste ano, com a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, que sintetiza duas conquistas fundamentais: a consolidação da democracia e da importância da estabilidade monetária, um marco fundamental num país que acumulou um índice inflacionário de mais de um quintilhão por cento no século passado.
Até 1930, o país era uma República de fazendeiros que dava continuidade ao Império, que, por sua vez, era continuação da política colonial portuguesa. Neste século de exíguos 73 anos, o Brasil virou uma nação moderna. A Revolução de 30 quebrou a espinha dorsal da República Velha, instituiu o discurso da unidade nacional e deu início à primeira arrancada industrial brasileira. No período entre 1930 e 1945, construiu-se boa parte dos alicerces do Brasil de hoje. Na seara política, Vargas foi um ditador como qualquer outro. Centralizou todas as decisões, prendeu inimigos políticos, censurou a imprensa. Na economia, foi diferente. Deu início à substituição de importações num país de indústria incipiente, fundada em geral por imigrantes italianos, que não fabricava muito mais que banha, tecidos e sapatos. Sob o tacão varguista, nasceu o projeto de uma potência industrial, que tem na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), inaugurada em 1941, um de seus símbolos mais fortes. O nacionalismo verde-e-amarelo desaguou em campanhas históricas, como a que resultou na criação da Petrobras, em 1953. Vem da Era Vargas também a modernização das relações de trabalho, com o salário mínimo e a hoje defasada legislação trabalhista que vigorou até o fim do século.
Getúlio Vargas, com dona Darcy: na Revolução de 30, morre o Brasil das oligarquias rurais
O projeto de nação gestado nesse período completou o desenho de identidade cultural iniciado na Semana de Arte Moderna de 1922, um grito de independência artística num país que tinha até então vergonha de ser brasileiro. O grupo liderado por Mário e Oswald de Andrade propunha que as influências externas fossem digeridas para criar uma cultura nacional de caráter próprio, na proposta estética batizada por Oswald de Antropofagia. Na década de 30, floresceu a fase social do trabalho de Cândido Portinari, brilhou a música de Heitor Villa-Lobos e foram escritos dois dos mais importantes livros de reflexão sobre o país – Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Paradoxalmente, foi na ditadura desse tempo que se criaram as condições para o segundo ciclo de desenvolvimento que marcou o século, no governo de Juscelino Kubitschek.
A primeira diferença entre esse segundo ciclo e a Era Vargas é a experiência democrática – incomum num século no qual os brasileiros passaram quarenta anos sem eleger presidente. Sob a democracia de JK, a nascente classe média ganhou o papel de protagonista da cena política e econômica. O desenvolvimento do governo Juscelino usufruiu da infra-estrutura legada pela era Vargas e voltou-se para os bens de consumo durável – geladeira, carro nacional, os primeiros radinhos a pilha, televisão. "A riqueza do país entrou pela primeira vez na casa dos brasileiros", resume o professor Francisco Carlos Teixeira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A era JK infundiu uma confiança inédita no futuro do país. "Ali foi plantada a semente de um sonho coletivo na imaginação brasileira", diz o economista Eduardo Giannetti da Fonseca. Um sonho que se concretizou em fatos que dependeram de decisão política, como a construção de Brasília, e em outros que têm um inegável componente de sorte, como a conquista da primeira Copa do Mundo, em 1958.
O período JK é, de certa forma, a síntese das características positivas e negativas da elite brasileira, que, por não ter um projeto de país, se voltou para o mundo e contribuiu para a construção de uma nação plural, aberta às influências estrangeiras. Essa é, em parte, a explicação para a assimilação dos imigrantes, que nas quatro primeiras décadas do século contribuíram com 10% do aumento populacional. A elite nacional tem outra característica importante. Ela não se cristalizou numa estrutura imutável, como aconteceu na França, por exemplo. O dito popular que prevê o destino de pobretão para o filho do pai barão reflete uma estrutura social com um grau de mobilidade extraordinário, abrindo espaço para o surgimento de uma classe média forte e produtiva, que se firmou como grande formadora de opinião. Cinco em cada dez brasileiros vivem melhor do que viviam seus pais. Quatro mantêm o mesmo padrão de vida, e apenas um desceu na escala social. A trajetória do presidente Lula, um retirante nordestino que virou operário e chegou ao Planalto, é o exemplo mais eloqüente dessa realidade.
AVANÇO SOCIAL
A Santa Casa de São Paulo na década de 30: mortalidade infantil teve queda de 80%
Outra característica brasileira é, no entanto, a de ter a vocação da riqueza sem a vocação da poupança. Nos anos 50, isso resultou no grande pecado do sonho embalado no ritmo da bossa nova. Em seus fundamentos objetivos, o projeto desenvolvimentista era artificial, porque assentado em inflação. Incapaz de gerar poupança pública para investir – o que ocorreu sob a ditadura Vargas e nos governos militares pós-golpe de 1964 à custa de uma brutal centralização de recursos em mãos do governo federal –, JK produziu inflação e irresponsabilidade fiscal. A embriaguez dos anos dourados provocou uma ressaca inflacionária que estourou no início dos anos 60.
O ciclo seguinte, iniciado em 1964, lançou o Brasil no período mais negro de sua história política. Foi no governo militar, no entanto, que se fez a segunda revolução industrial nacional, na qual o país completou seu investimento em infra-estrutura – principalmente em estradas, energia e telecomunicações – e ingressou no terreno da informática, da petroquímica, da química fina. No auge do milagre brasileiro, durante o governo Médici, o país crescia a uma taxa superior a 10% ao ano, chegando a atingir 14% em 1974. A classe média sentia-se catapultada ao paraíso. Além de usufruir prosperidade econômica, podia orgulhar-se de viver no país tricampeão mundial de futebol. A televisão, já então em cores e com programação transmitida via satélite, completava o processo de integração nacional. As novelas lançavam moda e modificavam costumes, já a caminho de se tornar um dos grandes fenômenos culturais do século. Na década de 70, pela primeira vez a população das cidades era maior que a do campo, coroando um dos mais vertiginosos processos de urbanização registrados no mundo.
Mais uma vez, o preço foi alto. O desenvolvimento financiado à custa de endividamento externo e de proteção cartorial à indústria brasileira jogou o país no pior dos mundos quando os juros internacionais se elevaram: recessão com inflação alta. No início dos anos 80, o PIB chegou a cair 4,3%, e a taxa média anual de inflação chegou a 800%. Com a estagnação econômica, sob uma inflação impenitente e com levas cada vez mais numerosas desembarcando nas periferias das grandes capitais, o resultado não podia ser outro: o aumento do contingente de miseráveis. Essas são as principais razões da desigualdade social que o Brasil exibe hoje.
A INDÚSTRIA DECOLA
Companhia Siderúrgica Nacional: na base da primeira revolução industrial
Os ciclos de crescimento passaram a ser cada vez mais curtos, em boa parte em decorrência do impacto de planos econômicos destinados a conter a corrida inflacionária. Mesmo depois do Plano Real, com a inflação sob controle, o país não consegue entrar naquilo que os especialistas chamam de desenvolvimento sustentável. Crescer de maneira sólida, sem cair na tentação da inflação ou do endividamento irresponsável, não é o único desafio. Mas sem vencê-lo será impossível desatar o grande nó da sociedade brasileira, que é a existência de dois brasis separados pela barreira da prosperidade. É essa realidade que faz com que o Brasil entre no século XXI como a 15ª economia do planeta e com uma agenda social do século XIX, que inclui problemas básicos como saneamento. É verdade que, ao debelar a inflação, o país deu o primeiro grande passo para reduzir a desigualdade social. Um forte indicativo disso é que nos anos 90, no pico do surto inflacionário, os 10% mais ricos ganhavam sessenta vezes mais que os 10% mais pobres. Em 2001, essa diferença havia caído para 47.
Ainda falta muito, no entanto. É impossível pensar num país próspero e socialmente justo sem investimento maciço em educação de qualidade. Um dos grandes pecados brasileiros é não ter investido em capital humano, como fizeram, por exemplo, os Tigres Asiáticos desde os anos 50. Entre os maiores responsáveis pela dificuldade de inserção do país na economia global está o descaso com a educação, que freou o desenvolvimento. Até 1973, o Brasil foi o país que mais cresceu no mundo. De 1983 a 1999, despencou para o 93º lugar. O país também terminou o século XX sem conseguir concluir reformas estruturais fundamentais para fechar os ralos por onde escoa a riqueza nacional. O desleixo com as finanças públicas tem um exemplo concreto na discussão da reforma tributária nas últimas semanas. Na ânsia de não perderem nem um centavo, os governadores deslancharam uma guerra fiscal que só vai aumentar o buraco das contas nacionais. E mais: apesar do grande amadurecimento institucional, carregamos problemas estruturais nos três poderes, seja na ineficiência do Judiciário, no clientelismo do Executivo e do Legislativo ou na doença endêmica da corrupção em quase todas as esferas da vida nacional.
Dancin' Days, de 1978: a novela lança moda e torna-se fenômeno cultural
Ainda assim, o país tem bons motivos para encarar o novo século com otimismo. E entre as principais razões estão a criatividade e a imensa capacidade de trabalho da população brasileira, que, aliadas a recursos naturais ainda longe do esgotamento, colocam o Brasil na trilha de tornar-se uma grande potência. No cenário mundial, o potencial do país é muito maior que o de alguns países que fecharam o século XX com desempenho melhor que o brasileiro. O Brasil é hoje a 15ª nação mais rica do mundo. Acima dessa posição, há dois grupos de países. O primeiro é formado por nações como Canadá e Itália, que estão atingindo o limite hipotético de sua capacidade de desenvolvimento. O segundo grupo é constituído por grandes nações emergentes, como a Índia e a China, que têm uma sociedade muito mais engessada que a brasileira. "A leitura positiva do século XX tem a vantagem de dimensionar corretamente os novos desafios", diz o colunista de VEJA e cientista político Sérgio Abranches. É fato. Para chegar ao século XXI com os desafios atuais, foi preciso enfrentar muitos outros. O Brasil venceu-os bravamente no século passado. Tem agora todas as chances de fazer o mesmo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário